Graças a uma revista de decoração, Minas Gerais está perto de receber de volta um significativo fragmento de sua históriaNas páginas de uma antiga edição sobre casas de fazenda, integrantes da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais localizaram o portal entalhado em pedra-sabão do século 18, que pertencia à Igreja do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, de São João del-Rei, na Região Central do estado, criminosamente demolida em 1970
A prova impressa na revista motivou os promotores a ingressar com ação civil pública pedindo a reintegração da relíquia à cidade de origem e proibindo a retirada da portada da fazenda, localizada em Campinas, até o fim do processoSe os proprietários venderem a peça antes do julgamento, estarão sujeitos a multa de R$ 100 mil
"É uma importante vitória da luta contra o esquecimento e pela memóriaSe a portada voltar para São João, estaremos reparando, 38 anos depois, um grave crime cometido contra a cidade", comemora o presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei (IHG) , José Antônio de Ávila SacramentoA briga pela portada foi uma das motivações para a criação do IHG, meses antes da demoliçãoNa época, mesmo tombada por outro instituto, o do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a igreja foi destruída a mando do padre Jacinto Lovato, que comercializou toras de madeira, retábulo e ornatos de pedra do templo, para arrecadar fundos e construir novo prédio
O maior tesouro da igreja a fachada principal foi vendida a um fazendeiro paulista por 5 mil cruzeiros, valor equivalente, hoje, a cerca de R$ 4,3 milA legenda da foto na revista em que a peça foi identificada enaltece a "face silenciosamente bela e mística das Minas Gerais" e destaca a "fé removida das igrejas ornadas por Aleijadinho para os redutos de São Martinho da Esperança", em referência ao nome da fazenda do banqueiro e colecionador de artes paulista Mário Pimenta Camargos, que morreu em 1996O texto não deixa dúvidas quando fala do "pórtico em pedra-sabão trazido de uma Igreja de São João del-Rei para enriquecer uma capelinha dos anos 50, perdida em meio à vegetação"
"A igreja foi demolida em uma época em que não havia preocupação em preservar o patrimônioEla não tinha o charme das igrejas do Centro, mais tradicionais", explica o promotor e curador do Patrimônio Cultural de São João del-Rei, Antônio Pedro da Silva Melo, um dos autores da ação civil públicaRepresentantes do IHG cobravam do Ministério Público providências em relação à portada havia pelo menos cinco anosSilva Melo afirma ter ficado surpreso ao encontrar, entre os documentos referentes à demolição da igreja, uma carta do então dirigente do Iphan, Afonso Arinos de Melo Franco, dizendo não haver, ali, qualquer elemento de cunho artístico que interessasse à preservação"Por ser desprovida de obras de arte conhecidas, a tratavam como uma igreja velha, em vez de histórica", afirma o promotor
Autorizado pelo bispo da época a vender os bens da igreja para levantar fundos necessários à construção de um novo templo, o padre Jacinto Lovato não gostou dos protestos contra a demoliçãoEm carta enviada ao IHG, que estava à frente da briga, disse não aceitar "a intromissão de alheios à religião em assuntos de competência da mesma" e argumentou que as igrejas eram para "uso dos fiéis e não para serem contempladas como pura arte de construção"A carta foi lida pelo pároco em voz alta, na missa de domingo"Mesmo criticado, o padre nunca se sensibilizou
Moradores e amigos do Bairro Matozinhos já demonstraram a intenção de construir um memorial com a portada, bem próximo ao lugar onde ela ficava no passadoOutra hipótese seria levá-la para o Museu de Arte Sacra de São João del-Rei, instalado no antigo prédio da cadeia da cidadeAtualmente, o lugar abriga mais de 200 peças dos séculos 17, 18 e 19"A volta da portada pode motivar outras pessoas que sabem onde estão peças do patrimônio histórico de suas cidades a tentar buscá-lasMesmo difícil, o processo vale a pena e serve de exemplo às novas gerações", afirma o presidente do IHG de São João del-Rei, José Antônio SacramentoDenúncias do tipo podem ser feitas às promotorias de defesa do Patrimônio Cultural das cidades.
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