Até representantes do Exército tentaram, em vão, evitar demolição de igreja histórica de São João del-Rei. Templo veio abaixo ao completar 200 anos e teve relíquias liqüidadas
Templo serviu de abrigo para voluntários a caminho da Guerra do Paraguai e também recepcionava romeiros que chegavam à cidade
Thiago Herdy
A demolição da Igreja do Senhor Bom Jesus do Matozinhos – da qual foi retirada portada que hoje adorna uma fazenda no interior de São Paulo, alvo de ação do Ministério Público mineiro – ocorreu na mesma data em que eram comemorados os 200 anos de construção do templo, erguido em 1770. A capela recepcionava romeiros e moradores, principalmente durante as festas do Espírito Santo, mas ficou marcada pela passagem das tropas dos Voluntários da Pátria, quando estavam a caminho da Guerra do Paraguai, na segunda metade do século 19. Homens que viajavam em direção ao front pernoitavam na igreja e, no dia seguinte, assistiam à missa; depois se alimentavam antes de seguir a marcha.
"Quando se articulou a demolição da igreja, representantes do Exército fizeram apelos para que ela não fosse ao chão", conta o presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, José Antônio de Ávila Sacramento. Ele se refere a documento enviado pelo general Dióscoro Gonçalves do Vale ao bispo dom Delfim Guedes, no fim da década de 1960. O pedido foi ignorado. Um dos fundadores do instituto, Altivo Câmara, registrou em texto a demolição: "O frontão veio abaixo, amarrado por dois cabos de aço e puxado por dois tratores. A cruz de ferro, que permanecera inclinada muitos dias, veio abaixo com o frontão. Uma perfeita lição de barbárie, dada de graça a uma população de 15 mil almas", criticou.
Altivo Câmara também registrou, no texto, a tentativa do então padre Sebastião Raimundo de Paiva de comprar a portada por 4 mil cruzeiros, valor inferior ao pago pelo fazendeiro paulista. Até hoje pároco da Igreja Nossa Senhora do Pilar, monsenhor Paiva se lembra bem da igreja demolida, mas não do episódio. Ele elogia a volta da portada – "para quem gosta, seria bom mais um lugar para visitar" –, mas afirma que não basta trazer de volta o bem cultural.
"No Brasil, o patrimônio é tombado, mas não cuidado. Há 55 anos estou entre a caldeira e o diabo, não tenho amparo para manter a paróquia preservada. Até para tirar goteira tem que pedir licença", critica Paiva, que diz recorrer “a algumas pessoas amigas”, para resolver pelo menos parte dos problemas da igreja que administra, atualmente tombada pelo patrimônio. "Os fiéis de hoje não são como antigamente. Se uma coisa é bela arquitetonicamente, tem que ser guardada. O mais difícil é cuidar das coisas. Sem ajuda, não tem jeito", diz.
QUEM LEVOU
O advogado e banqueiro Mário Pimenta Camargo (1929-1996), comprador da portada da Igreja de Bom Jesus do Matozinhos, de São João del-Rei, foi um dos maiores colecionadores de antigüidades e obras de arte do país. Sua coleção particular – formada por 4 mil itens, entre quadros, móveis, prataria, porcelanas e livros – já rodou países como França, Itália, Inglaterra, Bélgica, Portugal, Espanha e Argentina. Camargo dirigiu o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e exerceu cargos em diversas outras instituições artísticas, entre elas a Fundação Bienal de São Paulo e o Museu de Arte Moderna de Nova York. Na ação de autoria do Ministério Público, além de Pimenta Camargo, figura como réu a empresa Agropecuária Boa Esperança Ltda., de propriedade da família. Os promotores que ingressaram com o processo informaram que os herdeiros de Camargo responderão pela ação. Por duas vezes, a reportagem entrou em contato com representantes da empresa e da família, mas não houve retorno.
Objeto de fé orna boate na França
Segundo o MP, fachada da antiga matriz está na Europa
O possível retorno da portada da Igreja do Senhor de Bom Jesus do Matozinhos a São João del-Rei reacende as esperanças de encontrar uma outra portada de pedra-sabão ainda mais suntuosa: a que pertencia à antiga Matriz Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga, que ficava em Piranga, na Zona da Mata. A portada principal de madeira, marcos e moldura foram vendidos, em 1966, durante a demolição da igreja para construção de outra matriz. Acredita-se que o templo, erguido por bandeirantes em 1694, foi a primeira paróquia de Minas Gerais.
O Ministério Público foi informado que a fachada da antiga matriz teria sido levada para o exterior e atualmente estaria sendo usada para decorar uma casa noturna na França. Pedidos de colaboração foram feitos à Interpol, mas os policiais da corporação internacional informaram não ser possível localizar a peça com os dados repassados pelos promotores e pediram mais informações. Há poucos registros fotográficos da matriz e não se sabe a dimensão exata da portada, porque a planta do imóvel desapareceu na época da demolição.
No início do ano, Belo Horizonte devolveu a Capela de Santana, construída em 1712, à histórica Mariana, na Região Central de Minas. A igreja havia sido desmontada e reerguida, na década de 1970, na sede da empresa Mendes Júnior, no Bairro Estoril, Região Oeste de BH. Por lá ficou até 1999, quando a empresa fechou e doou as peças para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde permaneceram guardadas, até o início do ano. Em reunião na sede da Procuradoria-Geral de Justiça, na capital, a Prefeitura de Mariana assumiu o compromisso de reconstruir o templo católico no seu local de origem, o Bairro Gogô, a quatro quilômetros do Centro.
As peças ocupavam aproximadamente 200 metros de um galpão do câmpus da universidade na Pampulha, em BH, e haviam passado por um processo de descupinização. Os moradores de Gogô ainda lamentavam a perda do patrimônio e continuavam celebrando, a cada 24 de julho, a festa de Santana, sobre os alicerces de pedra que restaram. Uma comissão lutou por uma década pela reintegração da capela. Para o novo altar, foi levada uma réplica da imagem da padroeira; por questões de segurança, a original continuou no Museu Arquidiocesano de Arte Sacra.
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