A variedade e a aplicação dos materiais e técnicas construtivas em terra crua são numerosas. Nos dias atuais, esse tipo de arquitetura chega com força como solução para minimizar os impactos ambientais
Casa construída na França com terra e palha dentro de estrutura feita com madeira (acima), e construção natural na Lapinha da Serra, em Minas. Daniel Quintão e Frederico Prates destacam necessidade de disseminar o conhecimento
O momento é crucial para considerar uma utilização mais racional dos recursos naturais, tratando a sustentabilidade em seus aspectos globais de importância econômica, social, cultural, ambiental, chaves para a continuidade da sociedade humana, em melhor harmonia com o seu habitar sobre a Terra. Grandes resultados começam em pequenas atitudes dentro de casa e, no contexto da construção, resgatar saberes ancestrais é uma solução simples de alcance grandioso. Os sistemas construtivos em terra crua, baseados em alvenarias e vedações constituídas em barro não cozido (cru), cuja origem remonta há mais de 10 mil anos inicialmente na África e Oriente Médio e que resistem espalhados pelo mundo como patrimônio mundial da humanidade, abrem um leque de aplicações e vantagens para a arquitetura moderna.
"A arquitetura em terra apresenta muitos diferenciais ecológicos, econômicos e plásticos, essencialmente em tempos de crise financeira, déficit habitacional e constantes desastres naturais (este tipo de construção aliada a alguns processos pode também ser altamente resistente a abalos sísmicos). Difundir o conhecimento acerca da construção natural pode ser uma ferramenta para cada um conseguir erguer a própria casa, usando a terra do local, ainda sem necessidade da utilização da madeira tão prejudicial às florestas. É um meio de construir explorando o que está em volta, o valor cultural, social, econômico, ambiental de cada contexto em que a edificação está diretamente inserida", pontua o arquiteto guatemalteco Juan S. Trabanino Garcia, da Associação Arcolan e Rede PROTerra, realizador em parceria com a Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP), do 1º Ciclo de Conferências Arquitetura em Terra, que aconteceu em 29 de maio na cidade histórica, reunindo com sucesso de público profissionais de engenharia, arquitetura, construção civil, estudantes e entusiastas. "Tais técnicas, transpostas para o contexto contemporâneo, podem proporcionar, além de ambientes construídos diferenciados, uma mudança no modo de construção latente no momento visando, muito mais que o próprio espaço, edificações que zelem pela sustentabilidade, reduzindo a emissão de carbono e proporcionando o resgate de uma tradição cultural", acrescentam os arquitetos Daniel Quintão e Frederico Prates, da O3L Arquitetura, que ministraram palestra no evento.
O adobe, a taipa-de-pilão e o pau-a-pique são apenas algumas das técnicas construtivas em terra crua, abrangendo uma variedade de aplicações de processos e materiais para erguer paredes, muros, arcos, cúpulas e moradias inteiras, que acompanham as diferenças territoriais, climáticas e geológicas de cada local, explorando a matéria-prima ali disponível, ou, a própria terra do terreno, explicam Daniel e Frederico. "Isto traz uma equalização melhor dos custos finais da obra, inclusive no que diz respeito aos deslocamentos, fretes e custos com a compra de material. As edificações em terra crua podem ainda ser aliadas a revestimentos que seguem a mesma linguagem, como os rebocos e tintas à base de terra, que também não utilizam compostos químicos ou poluentes", ressaltam.
Como explicam de maneira mais genérica, a técnica do adobe consiste na moldagem de blocos de terra úmida adicionados, ou não, de palha que, após período de secagem, constituirão tijolos maciços para construção de alvenarias. Diferentemente dos tijolos convencionais, que passam por processo de cozimento em fornos de alta temperatura, o bloco de adobe é configurado por processo de secagem natural, não envolvendo a queima de seus elementos naturais. Já a taipa de pilão é um sistema rudimentar de construção de paredes e muros que consiste em comprimir a terra em fôrmas de madeira e metal no formato de uma grande caixa, onde o material recebe depois de socado, transversalmente, pequenos paus roliços envolvidos em folhas, geralmente de bananeiras, produzindo orifícios cilíndricos denominados "cabodás", que permitem o ancoramento do taipal em nova posição. "Essa técnica é usada para formar as paredes externas e as internas, estruturais, sobrecarregadas com pavimento superior ou com madeiramento do telhado.O pau-a-pique, por sua vez, é sem dúvida uma das mais antigas técnicas de construção em terra crua empregada no mundo. Trata-se de um modo de construção que comporta uma estrutura auto-portante, normalmente em madeira, e uma estrutura secundária constituída por uma trama de bambu ou varas de madeira mais esbeltas, entrelaçadas ou pregadas", ressaltam Daniel e Frederico.
"Os nossos avós construíam com a terra, mas a sociedade moderna do progresso parece limitada à cultura muito arraigada do cimento e concreto. As técnicas construtivas em terra crua constituem a identidade cultural de cada localidade em que são aplicadas e podem ter infinitas variações de acordo com a matéria-prima encontrada na própria região, criando ambientes saudáveis. Este tipo de construção respeita ainda o ciclo da terra em si: vem dela e volta para ela, sem nenhum dano na sua absorção pela natureza, ao contrário do cimento. Precisam estar regulamentadas, sem engessar no entanto a criatividade", continua Juan Trabanino.
Técnica de usar terra crua, baseada em alvenarias e vedação de barro não cozido é usada em vários países, como França e Peru (acima). A mesquita de Djénné, em Mali (abaixo), é a maior construção do mundo em adobe, em restauração pela fundação Aga Khan
ECOLOGIA
Aliado a um projeto arquitetônico eficaz, este tipo de edificação minimiza impactos ambientais em âmbitos multilaterais, com nenhum consumo energético ou emissão de carbono no processo construtivo, devido à baixa utilização de derivados do petróleo ou cimento, além das propriedades de isolamento termo-acústico presentes na densidade elevada do barro, que diminuem o uso de equipamentos de refrigeração, por exemplo, citam os arquitetos da O3L. "Em conjunto com tecnologias já disponíveis no mercado (reuso de água, captação de águas pluviais, aproveitamento da radiação solar, automação de equipamentos, etc), tais processos podem gerar edificações extremamente dinâmicas e sustentáveis", ressaltam.
Dentro de outro enfoque, a utilização das técnicas construtivas em terra crua garante, de maneira adequada, a preservação e conservação das edificações do passado colonial. Uma das vertentes do trabalho da O3L Arquitetura é atuar diretamente em comunidades que têm em sua matriz histórica as construções em terra, difundindo as técnicas para gerar agentes multiplicadores entre a nova geração, combatendo o desaparecimento de um saber ancestral que perde, com a falta de seus conhecedores mais antigos, um meio de transmissão.
Com todo apelo ecológico atual, é preciso divulgar de forma mais efetiva os sistemas construtivos em terra crua, que ainda sofre com a falta de referencial, valorização, regulamentação e normatização oficiais, incentivos políticos, e imagens deturpadas na mídia, lamenta Juan Trabanino. "Fiquei surpreendido com o encontro aqui em Minas, o engajamento e gana em se fazer algo, de maneira social e contemporânea. Mas a reflexão precisa ir a fundo e a rede de profissionais terrosos precisa se articular, sem competir. Existem pessoas trabalhando com isso no mundo todo, e elas precisam trocar experiências, erros e acertos, para disseminar o conhecimento que apóia as culturais locais quase sempre em dificuldades, e seguir avançando nesta aventura. Em Ouro Preto, por exemplo, onde quase todo o centro histórico é em pau-a-pique, o curso de arquitetura ainda prioriza a linha dos metais, sem voltar-se ao patrimônio cultural".
"A arquitetura em terra crua permeia diversos domínios, incluindo habitações de interesse social, permacultura, patrimônio, além dos projetos pitorescos, de alto luxo. Um assunto até então ausente nos currículos acadêmicos que agora figura em congressos e começa a ser trabalhado cientificamente. As ações neste sentido devem deixar de ser pontuais e livres de estereótipos", frisa Daniel Quintão. "E pequenas atitudes e demandas reais começam a mostrar que este movimento está crescendo", completa Frederico Prates.
*Juan S. Trabanino é um arquiteto guatemalteco graduado na França pela Ecole Nationale Supérieure d'Architecture de Toulouse, especializado em Arquitetura de Terra , pelo Laboratório CRATerre-Ecole Nationale Supérieure d'Architecture de Grenoble, também na França.Despertou o interesse pelo trabalho com sistemas construtivos em terra crua ainda durante a graduação, quando iniciou suas pesquisas na área abordando no projeto de formação as vantagens destas técnicas para as habitações de interesse social. Durante o mestrado, continuou os estudos propondo um protótipo de construções em terra para emergências, explorando o aspecto de sua resistência a desastres naturais. Agora, fundou a Associação Arcolan, no sul da França, entidade sem fins lucrativos que atua em várias frentes para disseminar o conhecimento acerca da arquitetura em terra crua, ressaltando a valorização das culturas locais. Também tem parceria com a Rede PROTerra, entidade íberoamericana com atuação na área.
*A O3L Arquitetura é uma empresa que atua área da construção contemporânea de baixo impacto ambiental e do patrimônio cultural, sediada na cidade de Belo Horizonte/ MG. Daniel Quintão especializou-se em Arquitetura de Terra - técnicas vernáculas, pela Ecole Nationale Supérieure d'Architecture de Grenoble e Laboratório CRATerre, França. Participou do desenvolvimento de projetos e obras de construções em terra junto à empresa francesa AKTerre - Construction et Matériaux en terre, instalada na região de Grenoble, Ródano - Alpes, além de elaborar inventários de bens culturais no âmbito do programa do ICMS Cultural no estado de Minas Gerais. Frederico Prates especializou-se em História da Cultura e da Arte pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. Desenvolve trabalhos na área da restauração e intervenção em bens culturais e possui ampla experiência nos trabalhos do ICMS Cultural junto a vários municípios mineiros.
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