Márcio Luiz diz que sua mãe recorreu ao usucapião porque a prefeitura não havia averbado a compra da casa
Adquirir uma propriedade é o sonho de muitos e custa caro. Prova disso são as parcelas de financiamentos habitacionais, que podem se arrastar por décadas. Mas além dessa modalidade de aquisição e da compra à vista, há uma parcela da população que conquista seu imóvel por meio de usucapião. Apesar de ser vista simplesmente como invasão de propriedade, o usucapião tem várias modalidades e está previsto na legislação.
Marcello Vieira de Mello, sócio do escritório Guimarães & Vieira de Mello Advogados, define o usucapião como prescrição aquisitiva. “É a aquisição (e consequente perda para o proprietário anterior) da propriedade de um imóvel em razão do decurso de um determinado período de tempo”, explica.
De acordo com o advogado, o usucapião pode ser requerido por quem ocupa um imóvel, sem a oposição do atual proprietário, pelo tempo determinado em lei e sem interrupção. “Tal indivíduo deverá ajuizar uma ação judicial, a fim de que o juiz declare seu direito à propriedade daquele imóvel”, diz.
Para comprovar o usucapião, são citados para responder a essa ação o proprietário do imóvel, vizinhos, o município, o Estado e a União. “Se não houver contestação por parte deles ou se os argumentos suscitados forem refutados pelo juiz, a sentença favorável é proferida e o autor da ação recebe um ofício, que, registrado no cartório de imóveis, lhe garante a propriedade sobre o bem.”
Esse processo foi vivenciado pelo militar da reserva Márcio Luiz Silva. Ele conta que sua mãe comprou, em 1972, lote em uma região conhecida como Gordura de Cima, que, na época, pertencia ao município de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e obteve um registro de compra, que era um documento válido. No entanto, quando precisou registrar o imóvel para retirar a escritura, a prefeitura não averbou a compra.
PROCESSO DEMORADO
Para que isso ocorresse, seria necessária a assinatura do primeiro vendedor da propriedade, que fazia parte de uma fazenda. Como ninguém da família foi encontrado, a orientação do advogado foi que Márcio tentasse a escritura por usucapião. “Minha mãe ficou chateada, porque quem ganha terreno assim é invasor, o que não era o casa dela, que o comprou”, lamenta.
Como a região pertenceu a dois municípios – Santa Luzia e Sabará – até fazer parte de Belo Horizonte, o processo foi demorado. Além disso, a família descobriu que o advogado contratado para cuidar do caso os estava extorquindo. “Aí, trocamos de profissional. Tive de ir às três prefeituras para reunir documentos e atrás do vendedor do lote, em Lagoa Santa e Confins, para que ele fosse ao cartório com a documentação que tinha”, conta Márcio.
Em 1993, a mãe do militar finalmente conseguiu o registro do imóvel, que hoje faz parte do Bairro Ipê, na Região Nordeste de Belo Horizonte. “O processo ficou tramitando uns três anos, teve de ter muitas audiências para saber o tempo em que morávamos no lugar – já tinha mais de 10 anos – para que o registro de compra tivesse credibilidade. Esse documento era uma boa base mas sozinho não se sustentava”, diz Márcio.
Processo moroso Para obter um imóvel por meio de usucapião é preciso preencher uma série de requisitos, que necessitam de comprovação na Justiça
Marcello de Mello, sócio do escritório Guimarães & Vieira de Mello Advogados, lembra uma expressão em latim que diz que o direito não socorre os que dormem
A situação vivenciada pelo militar da reserva Márcio Silva pode se encaixar em diversas modalidades de usucapião. Segundo o presidente da Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação (ABMH), Leandro Pacífico Souza Oliveira, dependendo do imóvel e da situação estão preenchidos os requisitos para mais de uma modalidade. “Por outro lado, esse caso apresentado pode estar regido por legislação anterior a 1988 (antes da Constituição), o que leva à aplicação da legislação da época. Além disso, o Código Civil também foi modificado em 2002”, lembra.
Para facilitar o entendimento, o advogado cita um exemplo que envolve mais de uma modalidade de usucapião. “Se eu tiver um apartamento urbano, com promessa de compra e venda, tendo exercido a posse mansa e pacífica por mais de 15 anos, fixado nele minha moradia e sua área seja menor que 250 metros quadrados (m²), estão preenchidos os requisitos para usucapião ordinário, extraordinário e constitucional”.
Quanto ao tempo necessário para adquirir imóvel por usucapião, Pacífico diz que varia de acordo com sua metragem, se ele é urbano ou rural e a documentação que se tem do bem. E para que seja instituído legalmente, é preciso que a pessoa utilize o imóvel como se fosse dono. “Perante a vizinhança e a sociedade deve existir o consenso (ou pelo menos a aparência) de que o possuidor age como se fosse dono”, completa.
Outro ponto importante diz respeito à ausência de oposição do real dono da propriedade. “Significa dizer que o proprietário do imóvel no cartório de registro de imóveis não pode ter tomado, durante o tempo da posse, nenhuma atitude visando à retomada do bem ou que resguardasse seu direito de propriedade”, alerta o presidente.
Os requisitos essenciais para se adquirir a propriedade por meio do usucapião variam de acordo com a modalidade. “A principal diferença está na metragem, no tempo e na natureza da posse. Em relação a esse último requisito, em determinados tipos de usucapião (como o constitucional) não é exigida a boa-fé da posse. Nos demais, exige-se que a posse não seja de má-fé.”
Ao contrário do que alguns podem pensar, em um processo judicial, é muito importante que quem esteja requerendo o usucapião consiga explicar como entrou no imóvel e como passou a exercer a posse como dono. “Na maioria das modalidades, não é permitido que um simples invasor de imóvel adquira a propriedade por meio do usucapião. Todavia, na modalidade prevista na Constituição, aplicável a imóveis de até 250 metros quadrados, tal ponto pode ser desconsiderado pelo juiz”, ressalva Pacífico.
IRREVERSÍVEL
Independentemente do tipo, uma vez dado ganho de causa a quem ocupou o imóvel por usucapião, não cabe indenização caso o antigo proprietário queira reaver a propriedade. “Existe uma expressão em latim muito utilizada no meio jurídico, que diz que o direito não socorre os que dormem. Se o proprietário não cuidou de sua propriedade, a ponto de permitir que alguém a ocupasse, sem oposição, pelos extensos prazos previstos na lei, não cabe ao Estado ou a quem quer que seja indenizá-lo”, afirma Marcello de Mello, sócio do escritório Guimarães & Vieira de Mello Advogados.
Leandro Pacífico acrescenta que, como o proprietário não vinha dando ao seu imóvel a função social prevista na Constituição, não cabe a ele compensação financeira. “Em um país com grande déficit habitacional, a propriedade deve gerar frutos à sociedade, seja por meio da moradia, seja por meio de sua exploração para geração de riquezas.”
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