"Uma casa antiga pode cair ou desaparecer, mas as grades da fachada continuam a existir", brinca a artista plástica mineira Fernanda Goulart, de 38 anos. Ela lembra que é comum tais peças irem para o ferro-velho. As grades ornamentadas de residências que estão dentro e nas fronteiras da Avenida do Contorno são o tema do doutorado da pesquisadora. O projeto é um inventário desses elementos, com ilustrações que mostram enorme diversidade de criações. Um ano de pesquisa já rendeu cerca de 1,5 mil desenhos e 4 mil fotos de grades ornamentadas.
A escolha do tema surgiu do fato de Fernanda Goulart morar numa casa dos anos 1960, que tem na fachada uma enorme grade. Passou então a reparar a peça em outras construções e, interessada em conhecer melhor o assunto, decidiu pelo projeto na Faculdade de Arquitetura, cujo título é Urbano ornamento: um inventário de grades ornamentais em Belo Horizonte (e outras belezas)’ orientada pelo filósofo Stéphane Huchet. “É trabalho sobre design, arquitetura, patrimônio e também sobre arte”, explica.
Grades ornamentadas podem ser encontradas em toda as regiões da cidade. “Considerei que me dedicar às grades seria bom motivo para conversa sobre a presença, na verdade resistência, do ornamento na cidade”, conta Fernanda Goulart.
Aspecto visto com reticência tanto pela arquitetura moderna quanto pela contemporânea. “Casas populares, grande parte delas dos anos 1970, não abriram mão do ornamento. Talvez por teimosia ou falta de opção, ouvi gente dizendo que, se pudesse, trocava por muro de blindex.”
A escolha por fazer um inventário tem motivo: “É instrumento de proteção, garante a imagem do objeto, é sistematização, estimula a descoberta de algo que está ali, escondido na paisagem”, explica. “Não gostaria de ver o meu trabalho apenas na biblioteca da faculdade. A vontade é compartilhar descobertas”, conta. E por isso mesmo está na luta para editar o trabalho valendo-se do crowfunding (www.catarse.me/urbanoOrnamento). Surpresa para ela foi encontrar durante a pesquisa enorme variedade de padrões em Belo Horizonte, onde o ferro ornamentado nem é tão forte, como em Salvador e no Rio de Janeiro.
Artista plástica e professora de artes gráficas na Escola de Belas Artes da UFMG, Fernanda Goulart justifica o doutorado em arquitetura, depois de mestrado em comunicação social: “Acho que é função do mundo da arte e dos artistas pensarem a cidade. Além disso, sempre me interessei pelo saber de fronteiras. As imagens e atos estéticos estão no mundo, não são de ninguém”, afirma. A visualidade elaborada das grades, para ela, são “desenhos no espaço”. E, no limite, memória gráfica, já que as fontes dos elaborados motivos decorativos vêm de catálogos de desenhos que circularam pelo mundo.
História
Há notícias de grades em Roma, no século 6. A grade decorativa, segundo a literatura sobre o assunto, teria nascido no século 12, na Espanha, para proteger edifícios públicos e igrejas. Como elemento de residências existem a partir do aparecimento de palacetes, na França do século 18. A intensificação do uso desse elemento se dá no século 19. Há notícias de que em Salvador e Ouro Preto os edifícios substituíram varandas de madeira por balaustres de ferro importados da Inglaterra.
Fernanda Goulart registrou as grades de Belo Horizonte em 1,5 mil desenhos e mais de 4 mil fotografias que documentam a variedade de estilos
Os temas ornamentais das grades, feitas por artesãos, eram escolhidos pelo cliente em catálogos de ornamentos, às vezes bastante luxuosos. “Grade é segurança em sentido amplo”, observa a pesquisadora, lembrando que elas também estão em parapeito de varandas. A grande maioria das grades ornamentais que estão na pesquisa de Fernanda Goulart estão em edificações construídas entre 1950 e 1970. Momento, observa, em que a sociedade vai ficando mais violenta. “Mas nesse período ainda há preocupação arquitetônica, de beleza”, acrescenta Goulart.
A grade ornamentada, feita por serralheiros, começa a desaparecer a partir dos anos 1980, com a oferta de produtos industrializados, o que leva a homogeneidade de padrões e peças destituídas de preocupações estéticas. Pesa ainda o artesanato ter ficado caro e as sucessivas mudanças da moda. “Desapareceu ainda nas escolas de arquitetura e design o ensino do ornamento, o que poderia estimular produção criativa, mesmo a partir de outros materiais”, acrescenta a pesquisadora. Belas grades, hoje, só no ferro-velho. Fernanda não se importa em vê-las nesse ambiente: “Sei que vão ser usadas novamente”, observa, certa de que o charme das peças tem vida longa.
FLORES E VOLUTAS Fernanda Goulart explica padrões de grades
Rendas
De forja ou fundição, as grades invariavelmente têm a força gráfica da filigrana. Alguns autores dizem que as iluminuras dos manuscritos serviram de inspiração aos ferreiros; outros afirmam que os primeiros ferros ornamentados são uma leitura das antigas rendas, ou seja, que vêm do universo da costura. De qualquer modo, há uma sofisticação singular e discreta nesta grade da Cidade Jardim, uma forja delicada e arrojada.
• Conde de Linhares, 278, Cidade Jardim
Brasão
Os edifícios mais antigos da Praça da Liberdade contêm os mais imponentes exemplos de grades ornamentais da cidade. Sua sofisticação se evidencia pela pintura dourada de alguns elementos e pela presença de brasões, monogramas e folhagens que, trabalhados como esculturas, ganham força naturalizante, como é o caso do portal do prédio do Centro Cultural Banco do Brasil.
• Praça da Liberdade, Funcionários
Teia
São raras as grades de Belo Horizonte que apresentam formas reconhecíveis no mundo natural. A maioria é composta por paisagens (cactos, coqueiros, pirâmides, nuvens, pássaros, galhos e até teias de aranha) e expressam não apenas um moda passageira (tipicamente arte déco, ainda que na cidade tal tendência tenha se manifestado tardiamente), mas também algum desejo de se diferenciar na paisagem.
• Rua Machado, 185, Floresta
Bigorna
As volutas são as mais conhecidas e adoradas figuras da arte da forja. Há estudiosos que dizem que sua forma surgiu da torção e do desenrolar de duas cordas; outros afirmam que representam as ondas do mar; e ainda as terminações em espiral das trepadeiras. Sobre as volutas de ferro, alguns serralheiros contam que o canto arredondado da bigorna é inteiramente responsável pela quase obsessão desses profissionais por essas formas.
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